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Olhai os lírios do campo
Jolivaldo Freitas
Ela estava lá, entre as páginas 81 e 82 desta obra escrita pelo gaúcho Érico Veríssimo, que vem a ser o pai de Luiz Fernando Veríssimo, pequena, seca como se fosse de madeira e madeira em seda fina é, espraiada e esparramada como se fosse uma gaze fina. Uma folha inerte, pequena, do tamanho de uma falange, unha, quedada por muitos anos. Estava presa na escuridão do livro de título “Olhai os lírios do campo” desde quando foi adquirido por alguém. Seria uma leitora romântica, voadora, cabeça no tempo, imaginando romances verdadeiros, plausíveis, viajando nas palavras férteis escritas pelo autor, sabe-se lá há quanto tempo, quantos dias, quantos partos, santas dores, muitos prazeres em noite mal dormidas ou dias enfrentados datilografando em sua Remington ou Royal e suas teclas quebradas e fitas que manchavam.
Ou seria um vetusto senhor, de idade avançada pensando como eram belos os lírios do seu tempo, em detrimento das flores dos tempos de agora, do tempo dele, relembrando seu passado de amores e prazeres, de hedonismo incubado ou escancarado, de como o tempo passa. A vida segue. As folhas secam.
Ou a pétala – folha – ainda retém em seu aprisionamento entre as páginas de papel apergaminhado – a mensagem de um amor correspondido, um amor solicitado, um amor ocorrido? Um amor perdido, pois quem guardou a folha, ou é uma pétala pois o rigor do tempo agindo mesmo dentro de um receptáculo escuro e seco retirou parte da sua característica primal, com certeza decidiu ajudar à memória retendo o momento mágico em que recebeu – teria sido um ramalhete? Uma unidade? Uma quantidade? – o mimo guardou no fundo do coração e no abissal que perfazem as páginas 81 e 82. E porque estas páginas e não a 90 e 91 ou a 153 e 154, vá saber. Muito embora nestas páginas tenha sido marcada, cravada, impressa que foi e que o branco do tecido hoje encontra-se sépia, como amarelecida é a passagem do tempo, onde o autor nos diz “Ele sentia a fragrância que vinha dela, num perfume quente e doce. Sua perturbação agora era de outra natureza. Pensamentos confusos lhe enevoavam a mente. Contemplaram-se em silêncio por breve instante. Ela sacudiu a cabeça devagar, largou o cigarro no cinzeiro e disse:
- O senhor é um exemplar raro duma espécie quase desaparecida.
- Ela está me assando em fogo lento – refletia Eugênio, sentindo a raiva voltar. ”
Interessante é que a folha – seria pétala? – está assentada justamente na frase seguinte em que o personagem pergunta: “E que espécie de mulher seria a senhora? ”
Eu releio os diálogos, adivinhando algumas palavras entrecobertas pela pétala – seria uma folhinha? –, com cuidado para não a retirar do seu espaço marcado, cravado, do seu sonho profundo, vez que quem colocou a lembrança ali, o fez no dia 2 de dezembro de 1960, conforme escreveu e marcou na primeira página do livro em letra desenhada com pena e tinta nanquim, colhida, provavelmente, de um velho tinteiro de vidro ou de cristal e garranchada sobre a – quem sabe, divago - mesa de uma escrivaninha com gaveteiros em jacarandá, imbuia ou cedro de verniz escuro, no melhor estilo vitoriano.
Sinto-me mal em mexer na plantinha – seria uma folha ou uma pétala? – ali postada como se fosse guardiã do tempo em um livro que pela força dos anos requer muito cuidado, com suas folhas frágeis, páginas que se soltam, costura que descostura e cola que se se descola. E com todo cuidado que um velho livro de bolso requer depois de quase 60 anos de manuseio ou entocado no sebo em que o adquiri, chego à página 122, na Segunda Parte, Décimo Terceiro Capítulo e paro buscando entender a assinatura que paira na primeira página, onde o leitor ou a leitora que se chamaria C. Kuder – será que a Internet me ajudaria a encontra a família? - se fez imortalizar como a obra e o autor pelo menos num compêndio frágil. Vou mandar recuperar e assinarei ao lado. Vou junto na história. Acrescento mais uma pétala? Uma folha? O que será quando alguém encontrar no futuro?
Escritor e jornalista? Jolivaldo.freitas@yahoo.com.br