Fundação
João Fernandes da Cunha
conheça aBiblioteca João Fernandes da Cunha
venha nos visitarFundação João Fernandes da Cunha
/ Artigos
por André Fraga
Você entra em uma loja de departamentos e, entre camisetas e anzóis de pesca, encontra prateleiras recheadas com pistolas, espingardas e outras armas de fogo. Sem muita burocracia você, ou qualquer outra pessoa, pode comprar, parcelando em até três vezes sem juros e registro grátis de brinde, e andar armado pelas ruas, nos bares, shoppings e parques. Estados Unidos? Não, esse era o Brasil até 2003, onde revistas e jornais estampavam páginas inteiras de promoções para a compra de armas de fogo, invocando e explorando o, já presente, sentimento de insegurança da população.
Saudosistas dirão que nessa época as pessoas se sentiam mais seguras. Não é o que os números gritam. Entre 1980 e 2003 as taxas de homicídio subiram de forma vertiginosa no Brasil, 8% ao ano, segundo dados do Ministério da Saúde e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA. Tinha bairro em São Paulo, o Jardim Ângela, que foi considerado pela ONU o mais violento do mundo, deixando a guerra civil da antiga Iugoslávia, a todo vapor em 1996, para trás nas estatísticas. Em 2003, ano que foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, o Brasil bateu a marca de 36,1 assassinatos para cada 100.000 habitantes, mais que o dobro da taxa de 1983, vinte anos antes, que era de 14.
O Estatuto do Desarmamento restringiu drasticamente a posse e o acesso a armas de fogo e, segundo o Mapa da Violência 2015, salvou mais de 160.000 vidas! O estudo mostra que o desarmamento não reduziu significativamente a taxa de homicídios, hoje em 29,9, mas cessou a progressão histórica que, se fosse mantida, seria de 71.118 homicídios para cada 100.000 habitantes nos dias de hoje. Do total de pessoas salvas, 113.071 foram jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos, a parcela da população mais afetada pela violência urbana, geralmente negros, pobres e sem estudo.
Há uma enxurrada de argumentos a favor e contra a posse e o porte de armas de fogo, mas o volume de pesquisas cientificas que mostram a relação entre o porte e posse de armas e efeitos negativos na sociedade é esmagadoramente maior. Estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, a sociedade mais armada do planeta, encontraram diversas relações entre posse de armas de fogo e aumento da violência. Pesquisa, realizada em 1993, desenvolvida por professores da Universidade de Washington e da Universidade do Tennessee, demonstrou que a arma de fogo mantida em casa para a proteção, é, na verdade, um fator de risco de homicídio no domicílio independentemente de outros fatores, e estudo desenvolvido em 1997, concluiu que famílias com histórico de aquisição de armas possuem um risco de algum membro se suicidar ou sofrer um homicídio duas vezes maior que aquelas famílias que não possuem armas, e que este risco persiste por mais de cinco anos após a aquisição da arma de fogo. Pesquisadores de Stanford e Columbia (John J Donohue, Chandler McClellan e Erdal Tekin), concluíram que a adoção de leis mais permissivas ao armamento da população eleva em até 15% o índice de crimes violentos.
Na África e América Latina, a taxa de homicídios sobe conforme aumenta a população armada, coisa que tem menos impacto em sociedades mais igualitárias. No Brasil, o estudo Menos Armas Menos Crimes do IPEA concluiu que a cada 1% a mais de armas, a taxa de homicídio aumenta 2%, mostrando que a desigualdade é uma variável letal para nossa realidade. Aqui, a região Nordeste se destaca, e hoje temos mais da metade dos homicídios do país. Uma conexão ainda mais perversa: as maiores taxas de homicídio caminham juntas com as maiores concentrações de jovens desempregados, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, mais uma vez.
Em 2006, CPI sobre tráfico de armas revelou que 86% das armas usadas por bandidos têm origem legal, sendo que 68% foram vendidas por empresas brasileiras. Tentativas de mudança com foco na flexibilização do Estatuto do Desarmamento são financiadas por uma indústria com forte lobby no Congresso Nacional e nenhuma transparência nas suas operações. O Brasil já é quarto maior exportador de armas de fogo do mundo, a frente de gigantes como China e Rússia. Armas brasileiras são frequentemente encontradas em posse de grupos paramilitares e terroristas na África e Oriente Médio. Ao invés de flexibilizar o Estatuto do Desarmamento é urgente a implementação de mecanismos previstos nele, mas ainda não efetivados, como a marcação das munições em lotes menores que os atuais para facilitar a identificação da origem de um projétil e a integração de bancos de dados sobre armas de fogo da Policia Federal e do Exército.
Medidas simplistas e uma canetada não vão reduzir a violência. O foco para enfrentar esse desafio deve estar na reforma do código penal, das instituições policiais e do sistema prisional, enfrentando a impunidade e modernizando todo o sistema de segurança pública, já que é responsabilidade do Estado assegurar a integridade física dos cidadãos. Essa responsabilidade não pode ser transferida para os indivíduos, os incentivando a ter e carregar armas. Porque esse cenário nós já conhecemos e sabemos o resultado.
Fonte: Bahia Notícias.
*André Fraga é Engenheiro Ambiental e Secretário de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência de Salvador