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https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-enigma-a-cada-eleicao,70003502780
J.R.Guzzo, O Estado de S.Paulo
05 de novembro de 2020 | 17h34
Não é todo dia que o público fica realmente com vontade de receber com urgência uma notícia internacional – ou nacional, quando se pensa um pouco melhor no assunto. Daí, quando aparece enfim uma ocasião dessas, a imprensa não consegue entregar à sua audiência a informação que ela está querendo: quem ganhou as eleições nos Estados Unidos? Só que, desta vez, nem os veículos de comunicação, nem os comunicadores, têm alguma coisa a ver com o problema. A notícia não saiu na hora que deveria ter saído porque, em consequência direta da maneira como os Estados Unidos organizam a sua política e o seu sistema eleitoral, não havia notícia. Os americanos votaram na terça-feira, dia 3 de novembro; na quinta, 48 horas depois – não 4 ou 8, mas 48 – ainda estava para se bater o martelo. Resultado de eleição na Bolívia sai mais depressa.
Mesmo com a contagem final, porém, não dá para saber com 100% de certeza o que vai realmente acontecer. A votação majoritária do candidato da oposição, Joseph Biden, está sendo contestada na Justiça pelo candidato da situação, Donald Trump. Não há como informar com segurança absoluta se a vantagem numérica expressa nas eleições vai ser transformada, depois de contado o último voto, na entrega da presidência a quem teve mais votos. Também não se sabe como as coisas vão rolar no tapetão acionado pelo presidente Trump. Não está claro, nem mesmo, se os tribunais dos Estados, ou a Corte Suprema, podem por lei, por lógica ou por realidade política, mudar um resultado que saiu das urnas – e, menos ainda, quantos dias vai durar essa história, ou quanto tempo.
Por que demorou tanto? É o preço a pagar por um dos sistemas eleitorais mais esquisitos do mundo – tirando, é claro, eleição em país africano ou em recantos especialmente obscuros do Terceiro ou Quarto Mundos, nos quais em geral não existe nenhuma relação entre o resultado final e a vontade dos eleitores. Para começar, quem ganha as eleições presidenciais nos Estados Unidos não é o candidato que teve mais votos. É quem consegue a maioria, ou 270 votos, numa espécie de “Colégio Eleitoral” com 538 “votos estaduais”, atribuídos (pelo menos no papel) segundo a população de cada um dos 50 Estados; quem ganha nas urnas leva todos os votos daquele estado. (Com exceção de dois Estados, mas aí já nem vale a pena tentar entender.)
A apuração se faz como no Brasil de 100 anos atrás, com multidões de funcionários contando a mão os votos, um por um, em “juntas” espalhadas por mais de 9 milhões de quilômetros quadrados. Cada Estado conta do jeito que quer, na hora que quer, com os seus próprios apuradores e segundo as suas próprias leis e sistemas de apuração. Os eleitores podem votar pelo correio. Podem votar por e-mail. Podem votar depois de encerrada a votação no Estado vizinho, ou no seu próprio Estado. Podem votar até no dia seguinte – ou, então, na véspera da eleição, ou mesmo vários dias antes. Um candidato parlamentar que morreu em outubro foi legalmente eleito. Trata-se, em suma, de um monumental convite à fraude por parte de quem controla a apuração.
O resto desta salada não poderia ser muito melhor. As pesquisas de “intenção de voto”, pela segunda vez seguida numa eleição presidencial, foram um desastre; quinze dias atrás garantiam uma vitória de lavada de Biden sobre Trump e no fim, como se viu, foi uma disputa desesperada por meia dúzia de “votos decisivos” em fins de mundo como o “Nebraska”, o “Arizona” e outros lugares que nem os americanos sabem direito que existem.
Os Estados Unidos, onde há mais de um século, e em tantas coisas, se desenha o futuro do mundo, oferecem um enigma a cada eleição presidencial. Desta vez, metade da população não quis mudar nada. A outra metade quis voltar ao passado.
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