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Ao jovem, inteligente e culto amigo Sérgio Faria.
A semana passada foi marcada por mais uma demonstração cabal de que o Brasil cada vez mais se distancia de práticas que o tornem um país de um grande presente, para fixar-se na direção de um futuro cada vez mais remoto e inalcançável, para desgraça do seu povo. Referimo-nos à derradeira e pendente ameaça de selecionar-se uma casta de intocáveis, personalidades de dimensões quase divinais, antípoda da ralé indiana, situada abaixo dos animais.
As ofensas verbais trocadas entre brasileiros e um ministro da Suprema Corte e seus familiares, num aeroporto italiano, suscitaram o anúncio de uma emenda constitucional que dobre as penas para quem ofender uma seleta minoria de titulares do poder – os ministros do STF, o Presidente da República, os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, o Procurador Geral da República e mais uma nonada -, com a ominosa exclusão de outros milhares de vezes mais numerosos servidores públicos que correm, diariamente, perigo real de morte, no cumprimento de suas mais comezinhas rotinas, figurando, acima de todos, pela intensidade do risco, os integrantes das polícias civil e militar, a categoria profissional mais arriscada, em escala planetária, como se afere da quantidade de vidas que perde.
Entre esses extremos, a proposta exclui da proteção deputados federais e senadores, deputados estaduais e vereadores, os membros dos demais tribunais federais e estaduais, os membros do Ministério Público e todos os juízes de Direito cujo dever é tomar decisões que contrariam de modo dramático os interesses de pessoas que vivem a seu redor em toda a faixa de sua movimentação diária.
O maior perigo dessa afrontosa proposta é alimentar o apetite do monstro institucional que caminha a passo acelerado para consolidar-se como a Ditadura do Judiciário, a mais temível de todas, como se infere da experiência histórica. Apenas para evidenciar como o Brasil vem caminhando na contramão do iluminismo, o pequeno-gigante Israel acaba de aprovar reforma constitucional que reduz os poderes do Judiciário, precisamente para permitir o avanço da consolidação de uma democracia moderna e forte, com o predomínio da Lei e não da vontade despótica dos seus aplicadores-intérpretes, como vem ocorrendo com membros do STF, sob o silêncio culpado, porque cúmplice, por omissão, da maioria.
O que caracteriza um regime de castas, como o vigorante na Índia, é o reconhecimento ostensivo de que os membros de certas profissões, atividades ou origens são mais valiosos do que outros, princípio incompatível com os valores democráticos.
Em países infelizes como o Brasil, em que a maioria não se peja em eleger bandidos para as mais elevadas funções, tamanho seu despreparo intelectual e baixa sua formação moral, viceja a crença, por exemplo, de que os policiais ali estão para morrer, a ponto de fazerem comentários do gênero: “no confronto entre policiais e bandidos, morreram seis bandidos e, APENAS, dois policiais”, numa clara aceitação da descartabilidade da vida dos membros de uma categoria que ainda nos permite circular pelas ruas da cidade.
Se o Congresso Nacional aprovar essa insensata medida protetiva, estaremos cada dia mais distantes de um Brasil, como preconizou Stefan Zweig(1881-1942), em livro de 1941, com o título Brasil, País do Futuro, onde escreveu palavras de grande entusiasmo, no ano que antecedeu sua morte por suicídio, com a esposa Lotte, em Petrópolis, em 1942: “Cada dia eu aprendi a amar mais este país e não gostaria de ter que reconstruir minha vida em outro lugar depois que o mundo da minha própria língua se afundou e se perdeu para mim, e minha pátria espiritual, a Europa, destruiu a si própria”.
Sem dúvida, uma histórica ilusão de ótica social.
Tribuna da Bahia – 27 de julho de 2023