Fundação
João Fernandes da Cunha
conheça aBiblioteca João Fernandes da Cunha
venha nos visitarFundação João Fernandes da Cunha
/ Artigos
A imagem de estudantes de medicina exibindo as vergonhas durante um jogo de vôlei de um campeonato universitário revoltou muita gente. Inclusive gente que não se revolta quando estudantes de sociologia mostram as vergonhas para fins ideológicos disfarçados de artísticos. Os estudantes foram expulsos da Unisa (Universidade Santo Amaro). Projetos de vida foram destruídos.
Tudo por causa de uma picardia estudantil. Daquelas que, outrora, rendiam no máximo uma dor de cabeça e uma memória vexatória que acompanharia os estudantes para o resto da vida. Mas não hoje. Não nesta nossa época marcada pela estranha mistura entre puritanismo e hedonismo exacerbado. Não neste nosso tempo de ultravigilância. Não na Era das Estupidezes Imperdoáveis.
Para que fique bem claro: é claro, é óbvio, é lógico (!, ! e !) que invadir uma quadra de esportes com o falo ao léu é errado, é reprovável e é digno de medidas disciplinares duras (sem trocadilho) por parte da Unisa. Mas há sempre certo exagero na histeria coletiva e, além disso, há algo de mais profundo nessa celeuma da qual ninguém se lembrará na semana que vem. Acompanhe comigo depois dos necessários parênteses.
Abre parênteses
Curioso é que calhou de o episódio dos ex-futuros médicos peladões vir à tona meses depois do ocorrido – e na mesma semana em que a ministra Rosa Weber pautou no STF a votação que, na prática, descriminaliza o aborto no Brasil. Uma decisão que a corte tomará às escondidas. E aqui vou me conter para não soltar uma injúria. Mas estou pensando nela. Pode acreditar que estou.
O que isso tem a ver com os alunos que faziam cosplay de Pee Wee em “Porky’s”? (Essa referência só os mais velhos entenderão). Ou de qualquer estudante com os hormônios demais e juízo de menos em qualquer comédia do gênero. Tem a ver porque só um estudante de medicina que nunca foi educado para as virtudes e para encarar o nobre ofício como uma vocação é que, um dia, depois de receber o cobiçado carimbo do MEC, se prestará ao serviço imundo de matar uma criança no ventre materno. Fecha parênteses.
Receitas azuis
Tanto os médicos quanto os pacientes que me leem hão de concordar: hoje em dia, a maioria, mas não a totalidade (nunca a totalidade), dos estudantes de medicina recita o juramento de Hipócrates com um único objetivo: ganhar dinheiro. E, veja bem!, não há nada de mau em ganhar dinheiro. Pelo contrário, com muito dinheiro um médico pode fazer muita caridade (no sentido cristão do termo).
O problema é quando o dinheiro se transforma num fim em si – e não na consequência natural de um trabalho bem feito. Esse raciocínio utilitarista e materialista, claro, não é exclusividade dos médicos. Ele se aplica a qualquer profissão. Inclusive para os chamados “operadores do direito”, mas também para engenheiros, economistas, comerciantes, industriais e até jornalistas. Se bem que excesso de dinheiro é um problema do qual a maioria dos jornalistas não padeço.
As razões para essa mudança no perfil dos estudantes de medicina (e dos médicos) são muitos e complexos demais para um texto apressado. Vão desde a decadência da “aristocracia natural” até o desinteresse geracional por tudo o que é genuinamente humano e pela metafísica. E passam necessariamente pela consolidação de uma mentalidade técnica e ateia que – atenção para a hipérbole! – matou o ser humano que habitava o médico.
O interessante é que essa mudança se reflete no prestígio social dos médicos, antes tratados como intelectuais admiráveis, quando não candidatos à santidade, e hoje tidos como meros carimbadores de receitas azuis e guias da Unimed. Antes Humanistas com agá maiúsculo (ainda que ilegível; letra de médico, sabe como é) e hoje reduzidos ao estereótipo do filhinho-de-papai que está com a vida ganha e por isso pode tudo. Inclusive sair por aí balangando animalesca e publicamente o bilau.