RJ e BA: o censo mostra a migração dos apartamentos para casas em condomínios?
Em seu artigo, Bruna Frascolla afirma que resta saber até que ponto o medo da violência, tão naturalizado nas metrópoles, não é ele mesmo uma causa de violência
Da infinidade de assuntos que o novo censo desperta, me chamaram a atenção o colossal declínio de Salvador e a leve queda da população do Rio de Janeiro. Qualquer declínio populacional chama a atenção, já que o censo mostrou que crescemos bem menos do que o esperado. No entanto, capitais que não só crescem pouco, como ainda perdem habitantes, chamam a atenção. Assim, enquanto a capital mais populosa do Brasil teve um tímido crescimento (1,7%), o Rio de Janeiro teve um tímido decrescimento de 1,72%. E Salvador, que há não muito tempo era a terceira maior capital, teve um abrupta queda de 9,6%. Agora é a quinta, atrás de Brasília e Fortaleza.
Pessoalmente, essa discrepância entre a queda das duas capitais me chamou a atenção, porque tenho familiaridade com as populações das duas cidades. É muito mais comum, ao menos no meu círculo, ver gente de classe média falar que quer ir embora do Rio de Janeiro do que que quer ir embora de Salvador. Quanto às classes mais baixas, desde a pandemia têm corrido a queixas de que Salvador está violenta. Não ouvi nada análogo no Rio de Janeiro, mas todos sabemos que esse foi o estado da federação que mais sofreu durante a pandemia com o ativismo judicial, de modo que podemos supor que as classes baixas do Rio tenham no mínimo tantos motivos para fugir de lá quanto as de Salvador. No entanto, o Rio de Janeiro perdeu quase 110 mil habitantes e Salvador 260 mil. Por quê?
Segundo o identitário oficial da Folha de S. Paulo, Thiago Amparo, Salvador perdeu tantos habitantes por ser uma capital negra. Então podemos parar o texto por aqui e dar o assunto por encerrado, já que um professor da FGV e doutor pela Universidade de Soros em Budapeste explicou tudo com uma única causa.
Brincadeira. Creio que o principal motivo para a perda populacional de Salvador é a facilidade que o baiano tem de se mudar da cidade. Comecemos pelo fator puramente humano: o paulistano e o carioca estão familiarizados com a história da migração nordestina para as suas cidades e sabem que muito da crise urbana se deve à incapacidade de as grandes cidades absorverem tamanha migração. O que pouco se lembra é que as capitais nordestinas sofrem com isso há mais tempo. Fortaleza, que agora é a quarta capital mais populosa do Brasil, chegou a contar com campos de concentração em seu entorno para impedir a migração dos flagelados da seca ainda na Era Vargas. O inchaço das metrópoles sudestinas é uma parcela da migração de nordestinos. Sem a fome no Ceará, o Brasil teria uma dificuldade imensa em ocupar a Amazônia, e muito provavelmente o Acre não teria sido incorporado à Federação (já que o uti possidetis foi garantido por seringueiros cearenses).
Pois bem: Salvador, tal como as demais capitais nordestinas, se inchou com a migração incessante de massas rurais egressas do interior da Bahia e, com menos frequência, de outros estados do Nordeste. E o São João é uma ocasião ótima para observar isso: a capital vira uma cidade fantasma porque todo o mundo foi para o “seu” interior. O “seu” interior pode ser tanto a cidade em que nasceu, quanto a cidade em que tem família. Por outro lado, o sertanejo do Rio de Janeiro e de São Paulo não pode fazer o caminho de volta com facilidade. Se em Salvador o sertanejo e seus descendentes estão a uma passagem de ônibus de suas raízes (e passagem de ônibus é bem mais barata na Bahia do que no Sul e no Sudeste), os vínculos não se desfazem, diferentemente dos descendentes de sertanejos que crescem nas metrópoles do Sudeste.
Daí resulta que para o baiano pobre é fácil voltar para a sua terra de origem. Por que ele quereria fazer isso? Porque o sertanejo vai à metrópole em busca de emprego; emprego, em Salvador, não há. Então, se for viver de auxílio, é mais racional o desalentado voltar para o interior, parar de pagar aluguel e ir morar na pequena propriedade familiar, nem que seja só por um tempo, até definir um novo destino. E novo destino não falta, haja vista o crescimento rumo à fronteira agrícola do cerrado (a população de Luís Eduardo Magalhães, extremo-oeste baiano, cresceu quase 80%), ou ainda a potência industrial de Santa Catarina.
Agora vamos às classes médias. O carioca não tem uma terra com raízes aonde possa voltar: mesmo que tenha ancestrais no estado do Rio de Janeiro, é possível que tenha nascido em outras áreas que também lotaram de gente, favelizaram-se e são governadas pelo tráfico. A pandemia, ao normalizar o home office, acentuou uma tendência que eu já observava: a de os pais de família já na meia idade quererem "sair do Rio" e se mudar para uma casa "no mato". No entanto, os cariocas com esse projeto têm dois problemas: o preço dos imóveis em área com "estrutura" (leia-se: condomínio com alguma segurança) e a distância do Rio. Então o carioca até compra uma casa lá na serra, mas os compromissos com o Rio não tornam viável as viagens de horas.
Outra tendência de classe média que observei, mas entre os cariocas jovens, é a de meio que assumir a mentalidade de baiano pobre e considerar São Paulo a terra das oportunidades
As próprias predileções por uma casa em área verde vêm mudando. A Região Serrana, que compreende Petrópolis e Teresópolis e não é tão distante da capital, não parece ter atraído o carioca. Teresópolis e a vizinha Guapimirim cresceram menos de 1%; Petrópolis, por outro lado, decresceu quase 6%. Já a área do Vale do Paraíba, onde fica a Serrinha do Alambari, é ainda mais distante e entrou na moda. Os cariocas se sujeitam à regulação ambiental com o fito de se manter afastados do caos urbano e da favelização. O município de Resende, onde fica a Serrinha, cresceu 8%, ganhando uns 10 mil habitantes. Um município com preservação ambiental que também ganhou uns 10 mil habitantes, mas cresceu 30%, foi Casimiro de Abreu, onde fica Poço das Antas. É possível que seja o próximo lugar a ser descoberto pelos cariocas. E Búzios teve um espetacular crescimento de 45% com 12,5 mil habitantes. Os cariocas terão se mudado para lá? Ou as praias da Bardot voltaram à moda, atraíram mais turismo e os novos habitantes são do setor de serviços? Como Búzios é uma cidade cara, é improvável que a classe média deseje se mudar para lá.
A outra tendência de classe média que observei, mas entre os jovens, é a de meio que assumir a mentalidade de baiano pobre e considerar São Paulo a terra das oportunidades. A economia lá vai melhor do que no Rio e há, ao menos no interior, uma promessa de melhor qualidade de vida. Assim, os cariocas de classe média conseguem transferências em seus escritórios, ou então estudam para concursos. No interior de São Paulo, os cariocas se livram dos engarrafamentos e da violência, e ainda ficam relativamente perto da família: basta pegar o carro para ir passar o natal. Mais ou menos como o baiano de origem rural que vai pro interior ver a família no São João.
A classe média de Salvador costuma querer condomínio na praia. Não é tão caro, nem é tão longe. A área predileta da classe média soteropolitana é o chamado “Litoral Norte”, que vai de Salvador até a divisa com Sergipe. O primeiro município saindo de Salvador nesse sentido é Lauro de Freitas, que ganhou 40 mil habitantes e cresceu 24%. Em seguida está Camaçari, com Guarajuba (um point de casas de praia, mas também um polo petroquímico), que ganhou quase 60 mil moradores. Já Mata de São João, onde ficam o complexo hoteleiro de Costa do Sauípe, muito frequentado por paulistas, e o point mais chique de casas de praia soteropolitanas (Praia do Forte), ganhou apenas uns 2 mil mil habitantes, crescendo porém 5%. O resto do Litoral Norte, mais distante de Salvador, perdeu população ou cresceu quase nada. Daí faz sentido supor que esse crescimento ao norte decorra da migração de soteropolitanos, tanto de classe média, quanto de pobres, que continuam integrados com a economia de Salvador. Na verdade, a própria Salvador cresce para o Norte desde os anos 70. Houve um período em que se tentou induzir o crescimento para o subúrbio e não colou. Ali pela virada do XX para o XXI, apareceram ou entraram na moda os condomínios Alphaville, ainda em Salvador mas lá pelas bandas do aeroporto (que fica na divisa com Lauro de Freitas) e Villas do Atlântico, já em Lauro de Freitas. E como essa gente toda demanda serviços, as favelas vão atrás. Voltando mais ainda no tempo, o hábito soteropolitano de urbanizar área praiana deve ter por baixo uns cem anos, já que o bairro do Rio Vermelho na década de 30 era um ermo com casas de praia; hoje nem se pode dizer que fique afastado do centro.
Creio que haja mais cariocas querendo sair do Rio do que soteropolitanos querendo sair de Salvador; o problema é que sair do Rio demanda mais planejamento, dinheiro e mudanças na rotina
Então podemos resumir o porquê da queda acentuada de Salvador em relação ao Rio de Janeiro: ambas são engarrafadas e violentas, mas é mais fácil sair de Salvador do que do Rio. É mais fácil tanto por questões geográficas (ao lado do Rio está a engarrafada e violenta Baixada), quanto por questões de relações humanas (os laços que o baiano tem com o interior). Creio que haja mais cariocas querendo sair do Rio do que soteropolitanos querendo sair de Salvador; o problema é que sair do Rio demanda mais planejamento, dinheiro e mudanças na rotina.
Esse êxodo da metrópole rumo aos condomínios de casas leva consigo um ethos urbano que eu, pessoalmente, acho desagradável: a segregação por classes sociais e, creio eu, o consequente estímulo à violência. Quando as populações urbanas migram para os condomínios feitos para recebê-las, elas não se integram à população rural pré-existente. Ao mesmo tempo, incrementam o mercado consumidor de drogas. As cercas do condomínio funcionam como um alerta para a bandidagem: “Os ricos estão todos aqui.” Mas como o cidadão urbano está acostumado à violência, irá considerar a cidade muito tranquila para os seus próprios parâmetros.
Eu integro essa estatística de soteropolitanos que abandonaram Salvador, mas, como o home office me permite, não fiquei na Região Metropolitana. Em vez disso, vim para uma área onde o tecido social permite que as pessoas morem em casas de rua (isto é, sem condomínio), e até tenham casas de rua enquanto moram em Salvador. As pessoas deixam as casas fechadas com tudo dentro por meses a fio – ou até anos, no caso da pandemia – sem achar que precisam de um condomínio para ter segurança. Os meus parentes urbanos do Sudeste ficam surpresos porque viajo e deixo a casa fechada, mas eu não faço nada de extravagante para os parâmetros locais. No entanto, os meus vizinhos dirão que a cidade é muito violenta, porque não se pode mais deixar a porta aberta. E aberta não significa destrancada, não; é aberta mesmo. As velhinhas pobres conservam esse hábito de deixar a porta da rua escancarada. Em Salvador, existe algo parecido que talvez seja outro vestígio: em dia de festa, os apartamentos deixam a porta aberta para os parentes e amigos irem entrando.
Resta saber, então, até que ponto o medo da violência, tão naturalizado nas metrópoles, não é ele mesmo uma causa de violência.